terça-feira, 20 de setembro de 2011

Sobre tótens e águas

por Vânia Luisa Spressola

Em algumas sociedades, árvores frondosas são os próprios ancestrais. Por isso, enquanto caminham, pessoas saúdam bichos, plantas e tudo quanto é ser vivo que encontram pelo caminho. À medida que pessoalizam natureza e naturalizam pessoas, fazem crescer identidades e coesão na composição do mundo. A ponto de bichos serem eleitos para representar o próprio grupo social ou clã (tornando-se tótens). E para alguém do Ocidente Moderno? Àrvores e bichos não chegam a um parente evolutivo muitíssimo distante. Árvores pertencem ao reino das coisas de que precisamos, os chamados recursos naturais. No mesmo reino podemos encontrar ferro, cobre, peixe, vaca, petróleo e algumas milhares de espécies em pesquisa: o mundo natural inteiro menos seres humanos. Mais apropriada ainda que a subtração é a sentença, ainda matemática:

natureza x homem

E estamos de volta ao tema da dicotomia entre homem e natureza, tão recorrente no pensamento ocidental. Por isso, a idéia aqui não é incentivar leitores a abraçarem árvores, como se fossem ancestrais (o que faria algum sentido, se pensássemos no ciclo do nitrogênio, do carbono, do hidrogênio). Antes, proponho problematizar ainda mais a relação do homem pós-moderno com a natureza, mais propriamente, compreender as origens de sua sincera dificuldade em conservar recursos naturais.
Veja o caso da água.
Crianças ocidentais geralmente crescem e se desenvolvem vendo água brotar de torneiras. Ignoram o mundo subterrâneo dos encanamentos e a fonte que é o próprio rio, leito e cabeceira! Um dia, me dirão os mais concretos, eles aprenderão o ciclo da água na escola, e saberão de onde vem a água de casa. Os encanamentos, numa reforma ou outra da casa aparecem, daí explico e pronto. Pronto.
Eu, muito afeita à idéia daquela esfera afetiva e anônima que nos constrange a agir assim ou assado, pergunto se a mera informação redime o mundo. Por que será que o desperdício é problema tanto ou mais sério do que o consumo, a despeito de ouvirmos umas três ou quatro vezes por dia que os recursos vão se esgotar*?
Desde os processos de urbanização, a relação humana com a  água ocorre principalmente por intermediação de um registro: Abre, fecha, abre, fecha, abre, abre, nunca fecha, abre, abre, abre, fecha.
Honestamente, não consigo imaginar o mundo sem a comodidade de registros e encanamentos. Mas ainda assim, reconheço as implicações simbólicas de nossa relação indireta com fontes e trajetos de um recurso natural tão importante. Pela vida toda.
É mais ou menos assim: Se superássemos a dicotomia entre natureza e homem bem no âmago de nossa relação com a água, usaríamos registro a vida inteira. Em compensação, olharíamos a torneira e, ao invés de nos encantarmos com o poder do abre-e-fecha (ou do bem intencionado fecha-fecha), nos encantaríamos com a façanha que é um pedaço de ferro forjado conter, nele corrente, um bocado de rio!

Um comentário:

  1. * tenho um texto bacana sobre consumo e desperdicio (em inglês), em breve compartilho.

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